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  • Foto do escritorArthur Vieira

Escritores e jornalistas se reúnem para debater o cenário da literatura no Festival da Bienal do Rio

A literatura nos dá a possibilidade de, a partir da realidade de outras leituras, extrair um valor simbólico daquilo que foi vivido pelo autor ou autora”. A frase é do escritor Milton Hatoum, renomado romancista brasileiro. Ele participou, junto com outros escritores, jornalistas, professores e artistas do Festival Conexões, evento online para discutir diversas questões no quadro da literatura e da sociedade atual.

Desenvolvido pela Bienal do Livro Rio e realizado em conjunto com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), o evento, que ocorreu nos dias 24 e 25 de outubro, levantou muitos questionamentos pouco discutidos e provocou inúmeras reflexões acerca dos mesmos.


Entre os convidados, o festival contou com grandes nomes da literatura e do jornalismo, como Leonardo Boff, grande expoente da Teoria da Libertação e autor de vários livros do gênero. Além dele, destacam-se aqui Ney Matogrosso, ex-vocalista da banda Secos & Molhados; Patrícia Campos Mello, colunista da Folha de S.Paulo e ganhadora de vários prêmios jornalísticos; o já mencionado Milton Hatoum, romancista brasileiro bicampeão do prêmio Jabuti e autor de mais de 20 romances; e Adriana Couto, jornalista e apresentadora com trabalhos pela TV Cultura, Rede Globo e Canal Futura.


Ao dar uma olhada na programação do festival, à primeira vista parece ser temas bastante corriqueiros e clichês, como as redes sociais, diminuição da leitura no país e a própria pandemia de Covid-19. Contudo, todas essas pautas tiveram uma abordagem diferente da convencional, com debates que fugiram do senso comum e abriram portas para novas visões de mundo. Ainda não há previsão de lançamento das transmissões do festival pelo YouTube, mas a live do dia 25 está disponível no site do Festival Conexões e pode ser acessada sem necessidade de inscrição.


Redes Sociais

As redes sociais foram o assunto-chave das duas primeiras palestras do festival. Em ambas as conversas, as redes foram citadas e discutidas como ferramentas de construção e expressão de ideias, assim como formadoras de novas identidades também, de personas e ao chamado “dispositivo de exposição da realidade”, o que foi bem mais destacado na segunda palestra, “Entre o real e o imaginário: a vida pela tela das redes”.


Contudo, mesmo com essa base semelhante, os dois debates foram completamente diferentes. No primeiro, as palestrantes Luana Genot e Ilona Szabó falaram da tendência atual dos digital influencers e sua contribuição em expor ideias para construir um país melhor para todos, mas também da polifonia existente que muitas vezes gera confusão e polarização entre os usuários.


Conforme a conversa foi desenrolando, mais elas e os ouvintes foram percebendo a importância das redes sociais para que a população se conscientize sobre os problemas sociais existentes no Brasil e sejam motivadas a solucioná-los, mas também citaram as fake news que vêm ganhando força nos meios virtuais. Luana, fundadora do Instituto Identidades do Brasil e ativista do movimento negro, levantou também questões sobre o racismo existente no país, e como mesmo com a ajuda das redes, ainda há muito a ser feito para que se tenha mudanças significativas neste quadro.


Já na segunda, o bate-papo sobre as redes convida as pessoas a olharem dentro de si, levantando questionamentos como “o que as redes sociais têm a dizer sobre nós? O quanto elas nos influencia? Somos realmente livres em nossas escolhas?”. Quem respondeu tais questionamentos foram a jornalista Patrícia Campos Mello, a escritora Ruth Manus e o psicanalista Christian Dunker, com mediação da jornalista Flávia Oliveira. A conversa foi como um exame de consciência sobre como estamos fazendo uso das redes e, como o próprio nome diz, traça um panorama entre o mundo real e o mundo imaginário, e até que ponto eles se conectam. Destaca-se aqui a contextualização do assunto com o momento atual da pandemia de Covid-19, em que a quarentena e o isolamento social contribuíram significativamente para o aumento do uso das redes sociais.


Luto social na pandemia

“É fundamental para nossa cultura resgatar a inteligência cordial, os direitos do coração, porque são eles que trazem o mundo dos valores, da empatia e do amor”. O autor desta frase é o renomado professor e teólogo Leonardo Boff. Ele foi um dos convidados na terceira e última palestra do dia 24.


Embora muito debatida na conversa anterior, a pandemia foi tema principal desta vez. Os campos de análise para ela não foram poucos. Além de Boff, os outros convidados foram a médica Ana Quintana, sócio-fundadora da Associação Casa do Cuidar, que promove assistência gratuita para pacientes com doenças graves; o estilista e designer Ronaldo Fraga; o professor e historiador Luiz Antônio Simas e a jornalista e escritora Eliana Alves Cruz na mediação.


De cara, os palestrantes colocaram em pauta a questão de saúde pública, destacaram a tristeza em verem o Brasil com mais de 5 milhões de casos e 150 mil mortes, quando poderiam claramente terem sido evitados, Ana ainda ressaltou a importância que o isolamento social teve, e ainda têm, para contenção da pandemia. Porém, o foco principal da conversa foi o quadro filosófico, espiritual e social do isolamento, com destaque para a parte de Boff.


Segundo ele, o ser humano precisa do contato, manter os laços com sua família e amigos principalmente em meio às “fragilidades psicológicas” trazidas pela pandemia, porque ela nos deixou “vulneráveis” e escancarou a necessidade de cuidarmos um dos outros. Algo que foi consenso entre todos foi também de que nada daqui para frente será como antes, que a pandemia provocou mudanças que talvez sejam irreparáveis, mas que saber lidar com elas e se adaptar a essa nova realidade é crucial para a estabilidade mental do ser humano.


O poder da ficção

Diferente do primeiro dia, em que as pautas se voltaram para atualidades, no segundo dia elas tiveram foco para as narrativas, ou seja, relatos de escritores sobre obras, projetos e outras discussões acerca da literatura, principalmente a busca pela restituição dos hábitos de leitura no Brasil, que a cada vez mais está caindo nos índices de leitura. Na palestra “Em defesa da literatura”, mediada pela apresentadora e jornalista Adriana Couto, os escritores Itamar Vieira e Milton Hatoum trouxeram isso à tona, ambos lembraram dos tempos de infância em que muitas histórias eram contadas oralmente, e como era frequente esse hábito, seja pelos seus pais ou avós.


Eles destacam também o valor e o poder que um livro tem, que uma história tem, e de como ela é atemporal. Para isso, ambos usaram o exemplo do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que foi um enorme expoente da literatura regionalista do século XX e que mostrou a todo o país a situação dos habitantes do interior nordestino; é uma prova de como a ficção pode ajudar a compreender o mundo, permite sair dessa bolha social. Indo para o presente, eles também falaram sobre como o país não tem políticas públicas de fomento à leitura e que é preciso ir aos poucos criando esse hábito, “ler é como se alimentar, a gente precisa criar esse ambiente no nosso lar, nas nossas famílias”, disse Itamar.

Ainda no campo da ficção, o Festival Conexões trouxe para o público conversas sobre um gênero literário que está em ascensão no mundo inteiro: os gêneros policiais. Os convidados desta conversa foram os escritores de histórias criminalísticas Ivan Mizanzuk e Raphael Montes, além de Branca Vianna, fundadora da rádio Novelo e apresentadora do podcast Praia dos Ossos. Mediado pela professora e roteirista Mariana Filgueiras, os três falaram sobre seus projetos e sua trajetória no mundo da literatura criminal, sejam elas baseadas em fatos ou totalmente ficcionais. Ambos mostram logo no início como têm sido o papel da imprensa durante uma investigação policial, e como a forma de cobertura diz muito sobre como não só o Estado age em certos casos, mas também como a sociedade reage a eles.


No caso de Ivan, o projeto relatado foi “O Caso Evandro”, um podcast que conta o caso real do sumiço do garoto Evandro Ramos Caetano nos anos 90, ele relatou sobre como foi a apuração deste caso e as diferenças dele para a cobertura da imprensa na época. “O Caso Evandro acabou virando um modelo interessante de, através de uma história criminal, fazer algumas reflexões sobre a segurança pública no Brasil”, disse Ivan ao falar sobre seu podcast.


Além dele, Branca também tem um podcast sobre uma história real a qual fez referência na palestra, sobre o crime na Praia dos Ossos, em que a jovem Ângela Diniz foi assassinada pelo namorado Raul “Doca” Street. Nele, Branca traz à reflexão como é ser mulher no Brasil, o que motiva tantos casos de feminicídio no país, e, assim como no outro podcast citado, houve uma apuração bastante turbulenta do caso. “Ler, escutar, assistir a essas histórias é de algum modo refletir sobre quem nós somos e sobre a sociedade, refletir sobre o papel da imprensa e da polícia nestes casos”, afirmou Raphael Montes, que diferente dos outros palestrantes, traz ao público suas histórias por meio dos livros, sendo autor de vários exemplos de sucesso como “Suicidas” e “Dias Perfeitos”.


Memórias registradas

No encerramento do evento, foi a vez de Ney Matogrosso contar suas histórias no mercado editorial. Ele, junto do escritor Ramon Nunes Mello, escreveu e publicou seu livro de memórias Vira-lata de raça, o qual conta toda sua trajetória na música e como se tornou um dos maiores cantores brasileiros dos anos 70 e 80. “Sempre tive vontade de fazer esse livro com ele e já tinha expressado isso. Nunca foi uma ideia minha fazer um livro sobre o Ney, mas com o Ney”, disse Ramon sobre a ideia de escrever o livro. Segundo Ney Matogrosso, a exposição de sua vida é bem mais aprofundada do que no palco, onde ele realmente aparecia publicamente, a ideia era a de mostrar não só o “Ney dos palcos” mas também o “Ney dos bastidores”, e por isso que buscaram contar também das histórias do artista na sua cidade natal, no Rio de Janeiro durante seu auge, e vários outros episódios marcantes de sua vida.


O artista conta também que muitas matérias veiculadas sobre si na imprensa não era sempre verdade, e que isso é mais detalhado no próprio livro, como por exemplo a relação dele com o cantor Cazuza e a gravação do DVD Eu quero é botar meu bloco na rua, o qual revelou ter gravado sem público por opção sua. Além disso, muitas histórias de problemas com a censura e a ditadura militar foram contadas por ele, e que faz questão de reforçá-las no seu livro, além de , é claro, os bastidores do Secos & Molhados, banda que lançou Ney no cenário musical do Brasil.


Por Arthur Vieira

Publicada em 8/11/2020 pelo Jornal Primeira Impressão

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